Um artista único<br>Um homem com três metros de altura

Manuel Augusto Araújo

Foi um dia de pro­dí­gios. Ma­lan­ga­tana, apanha bolas no Clube de Ténis de Lou­renço Mar­ques, pede a um dos pra­ti­cantes desse des­porto ex­clu­sivo dos co­lonos um par de sa­pa­ti­lhas ve­lhas. Pediu-as a Au­gusto Ca­bral, bió­logo e pintor, que o manda ir a sua casa, buscá-las. Ma­lan­ga­tana vai e en­contra Au­gusto Ca­bral a pintar. Fica fas­ci­nado. Ao pe­dido das sa­pa­ti­lhas junta o de tinta e pin­céis. Quer pintar, não sabe o quê. Só sabe que quer sentir a sen­su­a­li­dade dos pin­céis a afa­garem uma su­per­fície, a es­pa­lhar cores, de­finir formas, fazer apa­recer coisas. Dão-lhe as sa­pa­ti­lhas ve­lhas, pin­céis, tintas, umas chapas de con­tra­pla­cado.

«Vou pintar o quê? O que está dentro da tua ca­beça?»

 

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O que Ma­lan­ga­tana tinha dentro ca­beça era um mundo. Flo­restas de ár­vores. Flo­restas de pes­soas. Flo­restas de medos. Flo­restas de sons. Flo­restas de má­gicas. Flo­restas de co­ra­gens. Flo­restas fan­tás­ticas que na­quele dia co­me­çaram a correr a ou­sadia de uma vida in­ter­mi­nável.

O miúdo que co­me­çara a tra­ba­lhar aos 13 anos como pastor, que se ini­ciara nas prá­ticas das me­di­cinas tra­di­ci­o­nais, tinha um tio cu­ran­deiro, que viera do campo para a ci­dade para ser em­pre­gado do­més­tico e an­dava a apa­nhar bolas das par­tidas de ténis entre mem­bros da elite co­lo­nial tem, de re­pente, nas suas mãos as fer­ra­mentas de fazer com que o seu tempo pas­sado e o seu tempo pre­sente fossem tempo fu­turo, como teria dito Álvaro de Campos.

A sua vida cinde-se em duas. De dia é em­pre­gado de mesa e apa­nhador de bolas num clube da elite branca. Fe­chadas as horas de tra­balho vai para a ga­ragem do ar­qui­tecto Pancho Guedes, que lhe tinha ce­dido um es­paço, e pinta, pinta as ima­gens fan­tás­ticas que lhe ha­bitam a ca­beça. Pancho Guedes apoia-o com­prando, todos os meses, qua­dros a um preço então in­fla­ci­o­nado, hoje ir­ri­sório. É também em casa de Pancho Guedes que tem um en­contro que será de­ci­sivo na sua vida. En­contra-se com Edu­ardo Mon­dlane, na al­tura pro­fessor na uni­ver­si­dade norte-ame­ri­cana de Si­ra­cusa e téc­nico da ONU, que se tinha des­lo­cado a Mo­çam­bique a con­vite do Go­verno por­tu­guês, por in­ter­posta Missão Suíça, com o ob­jec­tivo de o atrair para co­la­borar com a ad­mi­nis­tração por­tu­guesa. Mon­dlane faz-lhe «ver as­pectos sobre os quais eu ainda não tinha pen­sado» (Ma­lan­ga­tana, se­ma­nário Sa­vana, 2010). Fala-lhe da re­le­vância da cul­tura do povo mo­çam­bi­cano e da im­por­tância do seu tra­balho de pintor nesse con­texto. Da im­por­tância desse tra­balho no fu­turo de Mo­çam­bique como país um dia in­de­pen­dente. Até lá, na luta pela in­de­pen­dência.

É o ano de 1961. Mon­dlane re­cusa qual­quer co­la­bo­ração com a ad­mi­nis­tração co­lo­nial e entra di­rec­ta­mente na luta pela li­ber­tação de Mo­çam­bique, uni­fi­cando os in­ci­pi­entes mo­vi­mentos in­de­pen­den­tistas. É um dos fun­da­dores e será o pri­meiro pre­si­dente da FRE­LIMO, que inicia a luta ar­mada em 1964. Mon­dlane será as­sas­si­nado em 1969, ví­tima de um aten­tado per­pe­trado pela PIDE.

Nesse mesmo ano, Ma­lan­ga­tana Va­lente Ngwenya (Va­lente porque a po­tência co­lo­nial obri­gava à in­clusão de um nome por­tu­guês no re­gisto dos au­tóc­tones) faz a sua pri­meira ex­po­sição nos sa­lões da As­so­ci­ação dos Or­ga­nismos Eco­nó­micos. O êxito é no­tável. A re­cepção crí­tica e as vendas sur­pre­endem con­fes­sa­da­mente Au­gusto Ca­bral, quem lhe tinha dado os pri­meiros pin­céis, as pri­meiras tintas.

 

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O mundo co­lo­nial vi­rado do avesso

 

Ma­lan­ga­tana tinha re­ben­tado uma tem­pes­tade tro­pical. O em­pre­gado que servia à mesa onde só se sen­tavam brancos, tinha dado um enorme e so­noro ar­roto que es­ti­lhaçou todas as re­gras de eti­queta im­por­tadas de uma me­tró­pole dis­tante. O pa­ter­na­lismo co­lo­ni­a­lista dos brandos cos­tumes in­qui­etou-se com o su­cesso do negro apanha bolas num clube re­ser­vado a brancos. Havia que o do­mes­ticar, in­te­grando-o, se pos­sível. Havia ainda um outro não menor in­có­modo. Um jovem pintor, sem qual­quer for­mação aca­dé­mica, tinha a ter­ceira classe e fre­quen­tara es­po­ra­di­ca­mente uns cursos no Nú­cleo de Arte, en­trava como um ci­clone nos meios ar­tís­ticos afir­mando as suas raízes afri­canas, a sua cul­tura afri­cana, fora de todos os pa­drões oci­den­ta­li­zados na al­tura do­mi­nados pelas cor­rentes abs­trac­ci­o­nistas, fa­vo­re­cidas ide­o­lo­gi­ca­mente contra os re­a­lismos. Era o mundo co­lo­nial e eu­ro­cên­trico vi­rado do avesso.

O su­cesso em Mo­çam­bique ecoa por África dos países recém-in­de­pen­dentes. Em 1962 a re­vista Black Orpheus, edi­tada na Ni­géria, país que tinha con­quis­tado a in­de­pen­dência dois anos antes, de­dica-lhe um ex­tenso ar­tigo pro­fu­sa­mente ilus­trado. Ma­lan­ga­tana tinha al­can­çado o su­cesso a uma ve­lo­ci­dade ver­ti­gi­nosa. Ver­ti­gi­nosa era também a cir­cu­lação das suas obras por terras afri­canas.

Pe­rante a re­a­li­dade in­con­tor­nável da ful­gu­rância da sua obra, foi con­vi­dado a par­ti­cipar na Bi­enal de S. Paulo, in­te­grando a re­pre­sen­tação por­tu­guesa. Re­cusa esse con­vite tal como or­dena, como forma de pro­testo contra a prisão de Nelson Man­dela, que os seus qua­dros sejam re­ti­rados de uma ex­po­sição de ar­tistas mo­çam­bi­canos que per­corria a África do Sul. São si­nais evi­dentes da sua afri­ca­ni­dade, de or­gulho na sua iden­ti­dade mo­çam­bi­cana, de outra Mo­çam­bique que não a da son­sa­mente vi­o­lenta pro­víncia ul­tra­ma­rina. O cro­co­dilo (Ngwenya) tinha de­vo­rado o va­lente.

Em 1964, ano em que a guerra de li­ber­tação se inicia no Norte de Mo­çam­bique, Ma­lan­ga­tana, acu­sado de co­la­borar com a FRE­LIMO, é preso pela po­lícia po­lí­tica por­tu­guesa. Du­rante de­zoito meses co­nhece du­reza do re­gime co­lo­nial. Não se deixar abater. É um em­bon­deiro de raízes fundas.

 

Um ci­dadão do mundo

 

Sai da prisão, volta aos pin­céis, às tintas. As suas flo­restas con­ti­nuam a in­vadir e a fixar-se nos su­portes por onde es­palha o seu enorme ta­lento. Em 1971, a Fun­dação Gul­ben­kian atribui-lhe uma bolsa para es­tudar gra­vura e ce­râ­mica em Lisboa. No ano se­guinte fará a sua pri­meira ex­po­sição in­di­vi­dual na ca­pital do es­far­ra­pado im­pério, na So­ci­e­dade Na­ci­onal de Belas-Artes e de­pois na Bu­cholz. Já era con­si­de­rado um dos grandes ar­tistas de uma África a viver a ex­ci­tação da emer­gência de novos países, de­se­nhando um novo mapa em que o seu país não fi­gu­rava.

Fi­nal­mente em 1974, Mo­çam­bique torna-se in­de­pen­dente e Ma­lan­ga­tana é, na­tu­ral­mente, o grande ar­tista na­ci­onal.

A sua pro­funda in­te­li­gência, a sua es­ta­tura hu­mana não se dei­xaram en­redar por esse re­co­nhe­ci­mento. En­volve-se di­rec­ta­mente na po­lí­tica e con­tinua a pintar, a de­se­nhar, a gravar, a fazer es­cul­tura. Con­tinua prin­ci­pal­mente a rein­ventar a sua obra, agora também em grandes mu­rais e outra obra pú­blica, sempre com os pés bem mer­gu­lhados na sua terra afri­cana. Con­tinua a viver a vida, a cantar, a dançar, a comer e a beber com o grande prazer e ale­gria de um ci­dadão do mundo en­quanto se des­mul­ti­plica em inú­meras ini­ci­a­tivas po­lí­ticas, de di­na­mi­zação das artes no seu país e de pro­tecção das cri­anças. Foi de­pu­tado da FRE­LIMO, par­ti­cipou em ac­ções de al­fa­be­ti­zação e de mo­bi­li­zação ide­o­ló­gica. Foi um dos or­ga­ni­za­dores do Museu Na­ci­onal de Arte de Mo­çam­bique e da ac­tual Es­cola de Artes Vi­suais. Criou nú­cleos de ar­te­sãos das zonas verdes de Mo­çam­bique e deu nova vida ao Nú­cleo de Arte, uma as­so­ci­ação de ar­tistas plás­ticos. Em prol das cri­anças a sua ac­ti­vi­dade foi sempre in­tensa da As­so­ci­ação dos Amigos da Cri­ança, de que foi di­rector, à As­so­ci­ação do Centro Cul­tural de Ma­ta­lana, a sua terra natal, que de­sen­volve vasta ac­ti­vi­dade so­cial e cí­vica. No meio de tanta ac­ti­vi­dade nunca deixou de pintar, de­se­nhar, gravar, es­culpir.

Ma­lan­ga­tana foi um ar­tista único e um homem com três me­tros de al­tura.



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